top of page

Entrevista a Anna B. Volk, Investigadora e Escritora de Artigos Porno

 

O que aprendeu e concluiu sobre a presença massiva da pornografia não mencionada nas questões das relações de género e questões económicas? Teve mais facilidade em encontrar respostas e compreendê-las em relação às questões de género por ter sido feminista e abraçar as questões das mulheres?

 

ABV – A sociedade não fala de pornografia porque não consegue situar a pornografia em esfera alguma.  Claramente não é “somente” cinema; também não é prostituição.  Não é arte mas pode ser arte, e é arte sem poder ser arte.  A pornografia é aquele espaço no canto da sala com o qual não sabemos o que fazer e que acaba passando desapercebido a menos que alguém o reclame.  Ultimamente, até como resultado de um novo movimento de atuação feminina em redes sociais, questões como sex work e pornografia tem figurado mais em discussões, sejam essas acadêmicas ou não.  É como se finalmente compreendessem que ignorar a pornografia não fará com que ela desapareça, e então é melhor tratar dela e tirar dela o que ela pode oferecer – que são essas discussões sobre relações sociais na atualidade, por exemplo. 

Me incomoda, no entanto, que muitas dessas discussões ainda estejam encerradas nos anos 70, ou num pseudo-ativismo feminista que se recusa a abaixar os cartazes e a ouvir quem de verdade participa dessas questões sobre pornografia e sex work, por exemplo.  Meu afastamento do movimento feminista na verdade é uma recusa em participar de diálogos com textos fechados de pensadoras como Andrea Dworkin, por exemplo, que era avessa à questão da pornografia e que não pode mais rever seu trabalho.  Ou ainda repetir que “pornografia é a teoria, estupro é a prática” quando, em 2017, as questões econômicas funcionam de maneira diferente de 1974, quando Robin Morgan falou aquilo.  Não me interessa um feminismo de cineclube, que invoque nomes para sessões nas quais a mulher ainda é alvo.  Preciso de um feminismo que olhe em volta e entenda a questão da pornografia, da prostituição, do aborto como questões socioeconômicas atuais, e que precisam ser endereçadas tendo em vista a melhoria da situação da mulher contemporânea sem a queimar em uma nova fogueira de inquisição na qual o fogo se mantém aceso através da repetição de discursos que já expiraram há tempos.

 

 

 

De que forma é que os estudos sobre porno e os filmes podem ser vistos como um trabalho credível? Como se podem quebrar desconfortos, descrenças e preconceitos?

 

ABV – Há 20 anos atrás, quando eu comecei a pesquisar literatura homossexual masculina e AIDS – o que imediatamente me fez receber o rótulo de lésbica, independentemente da minha sexualidade - eu ouvi de uma professora universitária que ela teria medo de ficar sozinha em sala comigo porque eu certamente abusaria dela sexualmente.  Hoje, na mesma universidade, vejo em sala alunas de graduação falando abertamente de sua homossexualidade.  Da mesma maneira que o mundo acadêmico não estava preparado para lidar com a questão homoerótica 20 anos atrás, ainda se engatinha no que tange a questão da pornografia.   Os estudos acadêmicos sobre pornografia ainda encontram muitos obstáculos porque ninguém admite saber do que está se falando.  É como se o público que assiste filmes pornôs não frequentasse a universidade – o que é um disparate afirmar.  Toda questão sexual ainda é um pouco tabu dentro do mundo acadêmico porque vem carregada de várias camadas de pré-conceitos sobre o pesquisador, como acontecia nos estudos gays e lésbicos no início dos anos 90.  Ainda não se trata a pornografia como uma disciplina (e não uso aqui o conceito de disciplina de Foucault, mas disciplina enquanto corpus de estudo), apesar de ela apontar para uma face das relações de gênero, de raça, relações econômicas, de classe e de relações sociais importantíssimas para discussões dos estudos culturais, por exemplo. 

O trabalho maior do porn scholar, portanto, é desvelar que por baixo de todo o preconceito no qual a pornografia vem submersa está uma gama absurda de possibilidades de espaços de discurso e debate que podem elucidar questões que estão sendo debatidas nos dias de hoje em várias áreas de conhecimento, e que talvez encontrem na pornografia uma visão tão periférica que na realidade centraliza questões em locais completamente inesperados.  Eu fui questionada recentemente sobre como lidaria com a questão de vocabulário em minha tese – porque aparentemente a academia não está preparada para palavras como ‘dupla penetração’ – e me espantou que em 2017 ainda se preocupem com conservadorismos linguísticos que restringem quais discursos tem acesso ao pensamento acadêmico e a quais a entrada é proibida.

 

 

 

A pornografia que começou a observar foi homossexual, primeiro masculina e depois feminina (feita para mulheres). O que a motivou a começar por pornografia específica para homossexuais? Através do seu trabalho de estudo e observação, qual é a importância de estes filmes se focarem nas pessoas homossexuais? Em que é que porno lésbico comercial pode denegrir ou descontextualizar o que são as verdadeiras relações?

 

ABV –  O primeiro filme pornô que eu assisti era um set up clássico de entrega de pizza, e a estética não me atraiu.  Isso era 1988, aproximadamente.  No mesmo dia, assisti um gay masculino, e a veracidade foi o que me capturou os olhos.  Me parecia – e eu só tinha 13 ou 14 anos – que era mais real do que o setup falsificado do entregador de pizza: uma sede de fazenda com homens gays fazendo sexo sem preâmbulos ou desculpas me parecia muito mais plausível do que o que eu havia acabado de assistir no pornô heterossexual.  Então na verdade não houve uma “escolha” consciente minha: houve uma aceitação crítica maior da pornografia gay dos anos 80/90 porque me parecia menos engessada, mais orgânica – apesar de eu não saber nomear essas coisas ainda.

 

A questão homossexual na pornografia varia muito entre o que é considerado gay e o que é considerado lésbico.  Trabalha-se com intencionalidade, com finalidade, com o que?  Se define o que é pornografia gay por mostrar dois homens tendo relações sexuais, mas se na tela aparecem duas mulheres isso é pornografia lésbica?  Muitos dirão que não, que a pornografia é feita exclusivamente para o olhar masculino, e que por isso ela não vai levar em consideração a questão do lesbianismo.  A zona escura do pornô lésbico é que muitas vezes ele reforça o estereótipo de lesbianismo existindo somente para o prazer masculino.  As relações lésbicas são geralmente retratadas na pornografia comercial como um preâmbulo para a inserção masculina no ato: elas não se sustentam em si.  Em alguns casos, quando há exclusividade de mulheres em cena, o olhar que recai sobre o ato ainda é essencialmente masculino.

 

Há, claro, a pornografia lésbica que contraria esses princípios, por assim dizer.  Estúdios como o Pink & White, da Shine Louise Houston, a Crash Pad Series, artistas como Courtney Trouble conseguem fazer uma pornografia lésbica que desvincula o masculino por completo da cena.  Curiosamente, são essas mesmas produtoras que intitulam seu material como pornografia queer, e não lésbica: porque ‘lésbica’ virou um rótulo para venda de uma pornografia feita para homens e que, em sua maioria, não se preocupa com a sexualidade feminina.

 

 

 

 

O olhar, o trabalho e a forma de estarem e pensarem pornografia e sexualidade destas actrizes - Zoey Holloway, Dylan Ryan, Katsuni, Sovereign Syre - em que é que a ajudam a mostrar uma maior positividade da pornografia e que conhecimentos adquire?

 

ABV: É inegável que nos últimos dez anos houve uma mudança na demografia dos performers pornográficos – o que impulsionou uma nova tendência no mercado produtor e, por consequência, no mercado consumidor de pornografia.  A presença da internet proporciona um profundo debate acerca do processo de criação de identidade, performance, posicionamento político e questionamentos de gênero dentro e fora dessa indústria majoritariamente californiana. A ativa participação de mulheres no Vale de San Fernando, não mais somente frente às câmeras, aliada à uma mudança no perfil dos performers que entram para a indústria, de uma maior normatização do produto pornográfico e da regulamentação legislativa acerca de procedimentos para filmagem de cenas transcendeu os limites da “porta verde” e adentrou o escopo das discussões públicas acerca dos elementos que compõe esse universo. 

O discurso das performers citadas, por exemplo, coloca a pornografia sob um novo prisma de discussão, até porque traz a história pessoal mesclada à história pública, permitindo uma perspectiva mais abrangente sobre o real papel político do performer pornográfico, o que garante uma maior compreensão deste universo que costumava acontecer exclusivamente longe de olhos públicos, ainda que se produto fosse destinado ao consumo.  Mais importante, no entanto, é a possibilidade de se ouvir uma voz que antes não era percebida por não se fazer presente: a da própria pessoa por trás da persona sexual que se apresenta às câmeras.  Pela primeira vez o “objeto do desejo” vira o “sujeito do discurso”: e isso altera completamente o ponto de vista de onde se observa a pornografia.  A performer pornográfica hoje em dia não mais é narrada em terceira pessoa, mas em primeira, com afirmações em tempo real sobre o que acontece e como se percebe não somente dentro da discussão pornô, mas também dentro do mundo “civil”.   Ela não mais necessita de porta-voz: ela fala do seu lugar, através de seu lugar, e sobre o seu lugar diretamente com o público, o que a alça a um novo patamar dentro da pluralidade de discursos sociais existentes.  Isso é uma das coisas mais preciosas acontecendo na pornografia hoje em dia: o livre posicionamento das performers na esfera social, mudando por completo a maneira como elas são percebidas pela sociedade.  E, independentemente de como pensam, o fato de estarem explicitando suas posições acerca de quaisquer assuntos as solidificam enquanto sujeitos dentro de um discurso que, até então, somente as objetificava.

 

 

 

Referiu ao whackmagazine que ao ver porno se sente mais atraída pela forma como tratam a sexualidade e a sexualidade feminina, porque é que é tão importante para si que haja uma grande preocupação pela sexualidade? O que é que o público pode ganhar com uma pornografia mais realista, cuidada, e dada às preocupações com a sexualidade?

 

ABV: Pornografia não é sobre sexo: é sobre sexualidade.  As possíveis variações do ato sexual são finitas, e estariam extintas se a pornografia lidasse somente com o sexo. A sexualidade, no entanto, se configura de maneiras tão plurais que permite que filmemos e refilmemos um mesmo assunto de maneiras infinitamente diferentes.  Quando analiso um filme pornô estou muito menos preocupada com o ato sexual em si do que com o discurso que tal ato sexual promove – mesmo que falemos somente de uma cena, uma vignette, e não de todo um filme. Não é a parte gráfica da pornografia que excita: é o que ela diz, mesmo que veladamente, sobre nós mesmos, sobre nossa sexualidade, nossos desejos, nossos interesses, nosso papel social, nossos pontos de vista.  Não sei se isso significa uma pornografia mais cuidada, mas uma pornografia mais atenta às questões da sexualidade irá ter um papel mais importante do que uma pornografia que se reduza à representação do ato sexual em si. 

 

 

 

Como académica investigadora, de que forma os seus estudos a ajudam e permitem interpretar melhor a pornografia? Desde que começou a estudar pornografia o que é que evoluiu na indústria e de que maneira os seus conhecimentos evoluíram?

 

ABV: Minha formação é quase toda voltada para a área de literatura e estudos culturais.  Eu comecei ainda na graduação com uma bolsa de pesquisa sobre literatura homoerótica, o que me deu uma carga de leitura bastante grande voltada para questões de gênero e sexualidade, o que sem sombra de dúvidas funciona como o arcabouço teórico das pesquisas que desenvolvo hoje em dia. 

Mas essa indústria muda diariamente.  O foco muda diariamente, as performers entram e saem da indústria, novos diretores, novos nichos.... É quase impossível ficar atualizado com tudo o que acontece, e eu acabo por me ver circulando dentro dos mesmos meios – que são os que me interessam enquanto material de pesquisa – e me surpreendendo com tudo de novo que aparece.  É muito importante para mim é o quão mais claro e mais acessível esse discurso está hoje em dia, comparado a cinco, dez anos atrás.  Em 2013, em conversa com Cindy Gallop, fui questionada por ela acerca do meu interesse por pornografia.  Minha resposta explicita minha luta constante para a reestruturação social baseada na inclusão da mulher enquanto agente: “É nosso último espaço para a luta, o único que ainda não exploramos.  Conquistamos a academia, a vida política, o mercado de trabalho: tudo o que nos era negado antes do movimento feminista está hoje a nosso alcance.  A única esquina que ainda não dobramos é a da pornografia. Ela ainda é entendida como se feita exclusivamente para homens, mesmo sendo consumida igualmente por homens e mulheres.  Está na hora de reclamarmos nosso lugar. E dessa vez em Porn Valley. ”

 

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

 

Entrevista: Pedro Marques

Correcção: Jú Matias

bottom of page